Na filosofia grega, a ética de Aristóteles ocupa um lugar central, e sua análise da amizade (philia) na Ética a Nicômaco é uma das contribuições mais profundas para o entendimento das relações humanas. Para Aristóteles, a amizade não é apenas um vínculo afetivo, mas uma prática ética que reflete escolhas, virtudes e a busca pela vida boa (eudaimonia). Este artigo, alinhado ao espírito reflexivo da tese que Amar é Comportamento, explora as três formas de amizade descritas por Aristóteles — por utilidade, por prazer e por virtude — e como elas se entrelaçam com escolhas morais e o cultivo do caráter.
A amizade na ética aristotélica
Para Aristóteles, a amizade é essencial à vida humana. Ele afirma que “ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo possuindo todos os outros bens” (Ética a Nicômaco, VIII, 1). A amizade é um reflexo da relação que temos conosco e com os outros, fundamentada na reciprocidade e no bem mútuo. Diferentemente do amor romântico ou da benevolência abstrata, a philia envolve uma conexão ativa, onde ambas as partes se engajam em escolhas conscientes para promover o bem-estar uma da outra.
Aristóteles distingue três tipos de amizade, baseados no motivo que as sustenta: utilidade, prazer e virtude. Cada tipo reflete diferentes intenções e níveis de profundidade, revelando como as escolhas éticas moldam os laços humanos.
As três formas de amizade
1. Amizade por utilidade
A amizade por utilidade é motivada por benefícios práticos. Os amigos se unem porque cada um oferece algo útil ao outro, como favores, contatos profissionais ou apoio material. Aristóteles observa que essas amizades são comuns em contextos comerciais ou entre pessoas em posições desiguais, como patrões e empregados.
Características e limitações: Essa amizade é instável, pois depende de interesses externos. Quando o benefício cessa, o vínculo tende a se dissolver. Embora prática, ela carece de profundidade emocional ou compromisso ético, sendo mais uma transação do que uma relação de cuidado genuíno.
Escolhas éticas: A amizade por utilidade não é inerentemente ruim, mas reflete escolhas baseadas em conveniência, não em virtude. Para Aristóteles, quem busca apenas utilidade pode negligenciar o desenvolvimento do caráter e a verdadeira conexão humana.
2. Amizade por prazer
A amizade por prazer surge quando os indivíduos se unem pelo deleite que encontram na companhia um do outro. É comum entre jovens, que buscam diversão, ou em relações baseadas em interesses compartilhados, como hobbies. Aristóteles associa essa amizade a emoções e momentos de alegria.
Características e limitações: Embora mais afetiva que a amizade por utilidade, ela também é frágil. Mudanças de gostos ou circunstâncias — como o fim de uma fase da vida — podem romper o laço. Essa amizade foca no presente, sem necessariamente envolver um compromisso duradouro.
Escolhas éticas: Escolher amigos por prazer reflete uma busca por gratificação imediata. Embora o prazer seja parte da vida boa, Aristóteles alerta que priorizá-lo exclusivamente pode limitar o crescimento moral, já que a amizade não desafia os indivíduos a cultivarem virtudes.
3. Amizade por virtude
A amizade por virtude, ou amizade perfeita, é o ideal aristotélico. Ela ocorre entre pessoas virtuosas que desejam o bem do outro pelo próprio bem do outro, não por interesse ou prazer. Esses amigos compartilham valores éticos, apoiam-se no crescimento mútuo e se inspiram a viver de acordo com a excelência (aretê).
Características e fortalezas: Essa amizade é rara e exige tempo, confiança e um caráter bem desenvolvido. Ela é duradoura, pois se baseia na constância da virtude, não em circunstâncias externas. Para Aristóteles, esses amigos são como “outro eu”, refletindo um espelho ético que promove autoconhecimento e eudaimonia.
Escolhas éticas: Escolher a amizade por virtude exige compromisso com a própria melhoria moral e com o bem do amigo. É uma prática ativa de coragem, justiça e generosidade, onde cada escolha reforça o caráter e fortalece o vínculo.
Virtudes e escolhas na amizade
A análise de Aristóteles destaca que a amizade é um campo de exercício ético. As virtudes — como a justiça, a temperança e a prudência — são essenciais para sustentar relações significativas, especialmente na amizade por virtude. Por exemplo:
Justiça: Na amizade perfeita, os amigos tratam um ao outro com equidade, sem esperar recompensas desproporcionais.
Generosidade: Escolher o bem do amigo, mesmo com sacrifício pessoal, reflete a disposição de colocar o outro acima do egoísmo.
Prudência: A capacidade de discernir quando e como agir em prol do amigo é crucial para manter a harmonia.
As escolhas éticas determinam o tipo de amizade que cultivamos. Optar por relações baseadas em utilidade ou prazer pode ser funcional, mas apenas a amizade por virtude alinha-se com a busca pela vida boa, pois exige que sejamos melhores versões de nós mesmos.
Aplicando Aristóteles hoje
No contexto do Amar é Comportamento, a visão aristotélica da amizade oferece lições práticas para nossas relações:
Reflita sobre suas motivações: Avalie suas amizades atuais. Elas são baseadas em benefícios, prazer ou valores compartilhados? Essa reflexão pode guiar escolhas mais alinhadas com seus ideais.
Cultive virtudes: Invista em seu caráter por meio de práticas como a escuta ativa, a paciência e o perdão. Essas qualidades atraem e sustentam amizades virtuosas.
Priorize a reciprocidade: A amizade exige esforço mútuo. Escolha amigos que também estejam comprometidos com o seu bem-estar.
Aceite a raridade: A amizade por virtude é excepcional. Valorize as poucas conexões que se aproximam desse ideal e invista nelas com dedicação.
Limitações da teoria aristotélica
Embora brilhante, a teoria de Aristóteles tem limitações. A amizade por virtude pode parecer elitista, já que exige um nível de desenvolvimento moral raro. Além disso, Aristóteles foca em amizades entre iguais, o que pode excluir relações entre pessoas de contextos sociais diferentes. Por fim, sua ênfase na virtude pode subestimar o valor das amizades por prazer ou utilidade, que também enriquecem a vida.
Conclusão
As três formas de amizade de Aristóteles — por utilidade, prazer e virtude — revelam que nossas relações são reflexos de nossas escolhas éticas. Enquanto as amizades por utilidade e prazer atendem a necessidades práticas ou momentâneas, a amizade por virtude é o ápice da philia, unindo indivíduos na busca pelo bem e pela excelência. No espírito do Amar é Comportamento, a lição de Aristóteles é clara: amar é um comportamento ativo, e a amizade verdadeira floresce quando escolhemos cultivar virtudes e priorizar o bem do outro. Assim, construímos não apenas laços duradouros, mas uma vida mais plena e significativa.